18 de nov. de 2011

O palhaço, de Selton Mello


Uma lenda antiga prega que o palhaço, quando não está em cena, é um sujeito triste. O personagem Benjamim, do filme O palhaço, interpretado por Selton Mello (que também dirige a produção) vivencia um drama diferente: ele suspeita que perdeu a graça em seus números. Sinal dos tempos, do avanço tecnológico e das várias formas de entretenimento do mundo virtual? Os dias de picadeiro estariam contados?

Não necessariamente é esta a questão posta em O palhaço, ainda que o filme nos conduza a fazer esta reflexão diametralmente. O grande foco do filme é a crise de identidade do palhaço Benjamim. Dilema este que funciona como camuflagem de um conflito psicológico maior, certamente vivenciado por todos nós em algum momento da vida: a falta de rumo. O que eu quero ser? Qual profissão seguir? É possível conciliar talento e autorrealização? A dúvida somente é dirimida quando nos arriscamos, quando partimos pelo mundo tateando o desconhecido, mesmo que não dê em nada. Muitos vão e se descobrem. Outros voltam para o ninho.

O jovem Benjamim é vacilante, ingênuo e sonhador. Titubeia entre continuar a vida imutável de circo ou se lançar para a experiência do mundo. Seu objeto de desejo é um simples ventilador para refrescá-lo no camarim. O seu oposto é o próprio pai, o experiente palhaço Valdemar (Paulo José), com quem contracena nos espetáculos. O destino de Valdemar já está traçado: será eternamente o palhaço Puro Sangue, como é conhecido, de um circo quase falido. Ele é a figura do conformismo.

O filme de Selton Mello retrata a vida de uma trupe que rasga o Brasil fazendo espetáculos circenses em cidadezinhas interioranas. O diretor usa o humor singelo para mascarar os dramas pessoais de cada personagem, quais sejam, o determinismo de suas vidas e a tristeza com a rotina desprovida de perspectivas. O palhaço pode ser dividido em dois atos: os percalços ocorridos nas viagens da trupe; e a fuga de Benjamim em busca de uma vida diferente.

A primeira parte, mais irreverente, retrata as viagens do grupo pelas estradas do interior. A quebra de um caminhão do circo conduz os atores a passar por situações inusitadas. Eles saem em busca de socorro e acabam encontrando uma exótica dupla de mecânicos, irmãos, primorosamente interpretada por Tonico Pereira. Aliás, as participações especiais são um espetáculo à parte. Moacyr Franco também não fica atrás ao interpretar um estranho delegado, mais preocupado com a saúde do seu gato do que com a própria mulher.

A irreverência do grupo é também sinônimo de esperteza. Em várias situações o grupo é obrigado a apelar para o suborno para se safar de algum aperto. Outra artimanha utilizada pela trupe é massagear o ego dos prefeitos das cidades pelas quais o circo passa, a fim de obter aplauso dos espectadores e, por que não?, algum "benefício" - nem que seja um simples jantar.

A segunda parte do filme narra a partida de Benjamim, como o Ulisses da Odisseia, para realizar seus sonhos: trabalhar, conquistar uma garota, providenciar a emissão de documento de identidade, e... comprar o tal ventilador. Nesse momento, o filme "fecha o foco" no personagem Benjamim e nas suas cabeçadas pelo mundo, revelando suas fragilidades, emoções e decepções.

A Estética e as influências

Vários detalhes técnicos utilizados por Selton Mello contribuem para a plasticidade irreverente de O palhaço - o que revela a habilidade do diretor (com o diretor de fotografia, claro) em ilustrar as cenas. Selton Mello carrega na tinta dos seus personagens, dando-os vida própria. Os atores mais parecem uma grande colagem; são mais coloridos que o cenário no qual estão inseridos, dando um tom fantasioso ao filme.

As imagens feitas do interior de uma Veraneio, quando em movimento, remetem ao velho artifício dos estúdios americanos, quando não existia a tecnologia dos efeitos especiais: o carro (num tom de cor mais forte) balança, enquanto a paisagem (descorada) corre ao fundo, como se fosse um rolo de imagens contínuo.

Nas filmagens, Selton Mello faz os movimentos de câmera partirem do universal para o particular, focalizando ao fim o perfil dos personagens, tentando captar a emoção em cada semblante. O espectador atento não pode deixar de reparar o belo travelling realizado na última cena do filme, acompanhando os passos de uma garotinha.

Não há como, no meio cinematográfico, diante dos milhares de filmes produzidos ao logo dos anos, deixar de apontar (ou especular sobre) algumas influências em O palhaço. O trajeto do grupo na Veraneio, em busca de socorro para o caminhão quebrado, é filmado num campo aberto, com a câmera fixa. O carro atravessa o plano da tela, de um lado para o outro, por várias vezes, lembrando as seqüências de Uma vida iluminada(2003), de Liev Schreiber. A garotinha loira, acenando no vidro traseiro do carro, inevitavelmente nos leva à Giulietta Masina, na cena de despedida em A estrada da vida (Fellini, 1954).

O palhaço remete a uma série de filmes. Difícil não lembrar de Bye Bye Brazil (Cacá Diegues, 1979) - também uma trupe que percorre o Brasil apresentando um espetáculo teatral. O filme de Selton Mello também é herdeiro de Shazan, Xerife & Cia, uma série antiga, já considerada cult, exibida no início dos anos 70 e protagonizada também por Paulo José. Há também ecos do cinema recente em O palhaço. As situações inusitadas (principalmente nas cenas com Tonico Pereira e Moacyr Franco) remetem a O cheiro do ralo (Heitor Dhalia, 2007).

O ponto fraco do filme de Selton Mello é a velocidade alucinante dos diálogos em alguns esquetes - principalmente nos "bate-bolas" entre Benjamim e Valdemar. Os diálogos são tão rápidos que se torna difícil acompanhá-los. O cinema brasileiro infelizmente assumiu, em muitos filmes, a influência do Guel Arraes de O auto da compadecida(2000). Os diálogos ágeis funcionaram muito naquele formato, mas vêm sendo repetidos exaustivamente em muitas produções brasileiras. É a mesma agilidade largamente utilizada como artifício de humor nos programas de tevê, que poderia muito bem ser abandonada no cinema.

O Diretor

Selton Mello fez dois filmes, diametralmente opostos em conteúdo, temática e estilo. Fazendo uma analogia barata, pode-se afirmar que ele fez o "côncavo" e o "convexo". Poderíamos dizer que O palhaço é o seu filme "convexo", que parte do interior (o circo e sua trupe) para o mundo. Seus personagens querem ser vistos, dialogam com o meio externo de forma irreverente, apesar de seus dilemas e da miséria material da vida circense. Já o primeiro filme do diretor, Feliz Natal (2008), é o filme "côncavo", fechado em si, cujo tempo narrativo é curto: a história se passa praticamente dentro de uma família, numa noite de natal. Feliz natal retira a máscara familiar, revelando conflitos há anos adormecidos em seus membros. Escancara a inveja e a melancolia de uma família com muitas contas a acertar. Tudo o que a polidez disfarça é desvendado ali.

Nota-se que Selton Mello, além de competente ator, é um observador atento do cinema - matéria-prima para uma carreira longeva de diretor. O palhaço e Feliz natal revelam habilidades de quem acompanha - e aprende com - bons cineastas. Parece que Selton absorveu um pouco da experiência dos diretores com os quais trabalhou como ator. Seus personagens de O cheiro do ralo e Auto da compadecida influenciaram a direção de O palhaço. Já o Selton Mello de Lavoura arcaica (Luiz Fernando Carvalho, 2001), talvez sua melhor atuação, influenciou o diretor de Feliz natal.

O palhaço é certamente uma boa novidade para o cinema brasileiro, principalmente por não abordar temas recorrentes com os quais já nos acostumamos, como violência, pobreza, favela, carnaval, sertão; e as comédias televisivas transpostas para o cinema. Resgatar o circo, apresentar essa importante arte à nova geração (a "geração gadgets") já é algo a se comemorar. O palhaço é um filme universal pela sua singeleza. Talvez ele consiga um difícil feito: aliar qualidade e popularidade.

por Wellington Machado

14 de nov. de 2011

Você tem o direito de não amar uma mulher


"Eu também faço parte do grupo dos fracos, imbecis, endividados e viciados em remédios para dormir"

Um belo dia, uma amiga fala de mim para esse senhor. Algo como “a Tati é legal”. Esse senhor me manda uma mensagem pelo Facebook dizendo ser muito amigo da amiga em comum e, simpático, elogia meus textos. Poxa, é um senhor simpático, amigo de uma amiga, interessado pelo meu trabalho, não vou ser escrota e não aceitá-lo em meu Facebook. Esse senhor me convida para jantar. Veja, gosto de rapazes da minha idade ou de senhores que se parecem com rapazes da minha idade. Esse senhor é careca e velho. Não quero nada com ele. Digo “Poxa, vamos deixar para ano que vem… caso seja bissexto” com simpatia na primeira, na segunda e na terceira vezes. Na quarta, mando um “Não quero jantar com você”. Ele então me escreve uma longa mensagem na qual me chama de:

1) metida,

2) arrogante,

3) nojenta,

4) escrota.

Deleto esse senhor do meu Facebook. E me recordo dos últimos 200 rapazes que se comportaram igualmente psicopatas e ridículos ao receber um “Não, obrigada” de minha pessoa. Penso em escrever um texto detonando essas espécies abomináveis que não sabem perder. Mas eis que me recordo de também fazer parte do grupo “paulistanos-publicitários-infantilizados-problemáticos” que não sabem perder. Estamos aos montes por aí — nos barzinhos modernetes da pesada, ganhando dinheiro para vender historinhas de merda que fazem os bancos emocionarem donas de casa, viajando a Paris pra passar só três dias apenas porque deu em nossas telhas. Somos fracos, imbecis, endividados e viciados em remédio pra dormir. Em agosto do ano passado, conheci esse rapaz lindo. Depois de um mês e quatro dias, ele me chutou. Com dignidade: me levou para jantar e discursou sobre sua incapacidade de amar — ainda mais uma mulher maravilhosa e incrível como eu. Também fui digna. Somente ouvi tudo e fui pra casa.Desde então, porém, ao encontrá-lo em festas, reuniões ou redes sociais, sempre dou um jeito de comunicá-lo sobre sua ignorância em não me querer. Se não me queria, para que dizer todas aquelas coisas fofas? Se não me queria, por que tantas juras de amor e conchinhas e quentinhos e trocas e momentos lindos? E isso e aquilo e mais um pouco. Hoje em dia, ele, com razão, muda de calçada ao me ver. Não tem nada mais deprê do que cobrar sentimentos do outro. Dá mesmo raiva quando alguém não gosta da gente, mas querer que a pessoa também sinta raiva de si mesma por não gostar da gente é doença. O desgraçado tem o direito de não gostar de mim, assim como tenho o direito de não curtir o tio careca. No entanto, no fundo, bem no fundo, uma vozinha grita: “Direito o cacete! Não sou uma tia careca. Sou legal, bonita!” E quase tenho de me controlar pra não largar este texto na metade e ligar pra dizer que o desgraçado é:

1) metido,

2) arrogante,

3) nojento,

4) escroto.

Com tantas evoluções espirituais, científicas, psiquiátricas, físicas e econômicas, só ficamos mais egocêntricos e infelizes. A verdade é:

1) tio careca, você é um babaca de pensar que eu tenho a obrigação de gostar de você;
2) rapaz que me deu um fora em agosto do ano passado, você é um babaca por não gostar de mim;
3) pelo menos na babaquice, fazemos um belo triângulo amoroso.

Tati Bernadi

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